|
|
Big Brother chegou?
06/02/2012 - 13:46:11
POR NEMÉRCIO NOGUEIRA
Conheci há tempos o francês que presidia a
Fundação Fredrik Rosing Bull, cujo nome homenageia um talentoso engenheiro
norueguês que nasceu em 1882 e foi pioneiro no desenvolvimento tecnológico da
Europa. Essa fundação foi criada pela Bull, empresa também batizada em
homenagem a esse engenheiro, líder francesa do desenvolvimento da tecnologia
digital, que atualmente, como Groupe Bull, atua em uma centena de países,
inclusive o Brasil. Na minha conversa com o presidente dessa
Fundação – que estuda as conseqüências econômicas, sociais e humanas do emprego
generalizado da informática – surpreendi-me quando ele disse que sua entidade
era contrária à identificação das pessoas, pelo Estado, com um número único para
cada indivíduo (RG, CPF, carteira de motorista, título de eleitor etc., todos
com o mesmo número), coisa que, na minha santa ignorância, parecia lógica,
eficiente, racional e facilitadora da vida das pessoas. Essa conversa e a minha ignara perplexidade
aconteceram há quarenta anos. Dando um fast-forward
para os dias de hoje, acabo de ler um livro assustador (infelizmente ainda não
publicado em português) que me recordou esse episódio. Chama-se Dying Light(**), do jornalista inglês
Henry Porter, que vem-se dedicando à luta pelos direitos humanos, liberdades
civis e de expressão na Grã Bretanha. Publicada em 2009, a obra veio à luz, por
coincidência, exatamente 60 anos depois da primeira edição de 1984, do também inglês George Orwell,
ficção que previa a instalação de uma ditadura mundial em que cada cidadão era
espionado e todos os detalhes de sua vida absolutamente controlados pelo
governo (o Big Brother), por meio de
um sistema de câmeras e comunicação eletrônica. Na base do raciocínio do autor de Dying Light está a constatação de que,
se por um lado esses sistemas proporcionam os benefícios de melhores serviços
públicos, maior segurança e capacidade de prevenção de atividades criminosas, ao
mesmo tempo apresentam o grande risco de colocar nas mãos de quem exerce o
governo o potencial para asfixiar a opinião pública e destruir a base da
democracia, que é o poder exercido pelo povo e para o povo – não por e para
quem exerce os poderes do Estado. A partir do contexto real de prevenção e
combate ao terrorismo que se implantou nos mandatos de George W. Bush nos EUA e
Tony Blair na Grã Bretanha, o livro de Henry Porter pinta uma situação imaginária
em que o primeiro-ministro inglês prepara simplesmente a instalação de uma
ditadura, graças a sistemas de comunicação e informação que lhe propiciam o
controle absoluto e total da vida e de todos os atos (inclusive atitudes
políticas) dos cidadãos. E o
mais grave é que, apesar de ser obra de ficção, como 1984, o livro cita legislação real em vigor hoje na Inglaterra – e,
pior ainda, assinala que todas essas leis restritivas à liberdade individual
foram tranquilamente aprovadas e implantadas, com pouca discussão, debate ou
reação da complacente e acomodada opinião pública, interessada apenas na sua
rotina da vida diária e – como eu, quarenta anos atrás – sem levar em conta o
risco político embutido nessas leis. Segundo Porter, num comentário publicado como
posfácio ao livro, “os britânicos passaram a ser os cidadãos mais estritamente
controlados do Ocidente, talvez de todo o mundo. Temos mais câmeras nas ruas
que a soma de aparelhos instalados em todo o resto da Europa. Essas câmeras
infestam não só as ruas e os shopping
centers, mas também restaurantes, cinemas e bares por toda parte, que fotografam
a cabeça e os ombros de cada individuo que neles entra.” E prossegue: “As pessoas são vigiadas o tempo
todo. Ao viajar pelas rodovias todos são monitorados por câmeras que lêem as
placas dos carros e os dados de cada viagem são armazenados por cinco anos.” E
por aí vai. Tudo abençoado por legislação vigente no
país. O governo, segundo Porter, tem o direito de acessar os dados telefônicos
e online de todas as pessoas,
acompanhar e registrar a vida de seus filhos num banco de dados nacional e
exigir mais de 50 informações de cada cidadão que deseja sair de seu próprio
país. Transações individuais, dados sobre a saúde de cada um, tudo armazenado
para sempre em bancos de dados. Um diploma legal que merece especial atenção
em Dying Light é o Civil Contingencies Act 2004 (Lei de
Contingências Civis, de 2004), que, segundo Porter, “permite que o
primeiro-ministro, um ministro ou o líder do governo na Câmara desmantele da
noite para o dia a democracia e o império da lei”. Citando outros autores, ele
comenta que essa lei permite ao governo a suspensão de viagens, ocupação de
propriedades, evacuação forçada, tribunais especiais e detenção e prisão
arbitrárias. Seria importante que alguma editora
publicasse esse livro em português no Brasil. Deveriam lê-lo todos os que, no
governo e fora dele, se preocupam com a manutenção das nossas liberdades
individuais, da liberdade de expressão e de imprensa, no contexto maior dos
direitos humanos, em face do inapelável avanço dos recursos eletrônicos, que,
por sua própria natureza, tendem a se tornar cada vez mais invasivos e
controladores. Da mesma forma que as burocracias. E também deveriam ler esse inquietante livro os
que defendem a unificação do número de identificação dos cidadãos; os que se
opõem ou resistem à Lei de Acesso à Informação Pública, que entrou em vigor no
Brasil em Novembro último; os que escancaram abundantes informações e fotos de
sua vida e de seus amigos nos Facebooks da vida; os que criam sistemas de
“mineração de dados” que permitem às empresas prever o comportamento,
preferências e tendências de consumo dos cidadãos; os que possibilitam que a
moça da central de telemarketing que
nunca me viu na vida me ligue à noite, em casa, me chamando pelo nome, para
vender algum produto. É cada vez mais fácil usar todos esses mesmos
recursos que aumentam nossa eficiência e produtividade – e o muito mais que vem
por aí na tecnologia digital – também para nos invadir, nos controlar, nos
manobrar e nos dominar.
|
|
|
|