Perguntaram a Sólon, um dos sete
sábios da Grécia antiga, se havia produzido boa legislação para os atenienses.
Respondeu: "Dei-lhes as melhores leis que podiam suportar".
Perguntaram ao barão de Montesquieu, o formulador da teoria da separação dos Poderes,
quais as boas leis que um país deve ter. A resposta: "Quando vou a um
país, não examino se há boas leis, mas se são executadas as que existem, pois
há boas normas por toda parte".
Pergunte-se a um representante do povo
no Parlamento brasileiro que critérios guiam a tarefa legislativa. É provável
que aponte o número de projetos apresentados - sem destaque para o mérito -,
corroborando a ideia de que, em nossa seara parlamentar, vale mais a quantidade
do feijão plantado sobre a terra, do qual pouco se aproveita, do que a
qualidade da semente. Amparadas pela força da lei, coisas estapafúrdias como o
Dia da Joia Folheada (toda última terça-feira de agosto), o Dia das Estrelas do
Oriente, a Semana do Bebê e outras esquisitices povoam o manual do joio legislativo,
escrito por parcela ponderável do corpo parlamentar. Instados fossem a
discorrer sobre a natureza de nossas leis, os Sólons tupiniquins poderiam sacar
a resposta: "São as leis que os brasileiros têm de aguentar". Cada
povo com sua medida legislativa.
Não bastasse a progressão geométrica
daquilo que se pode chamar Produto Nacional Bruto da Inocuidade Legislativa
(PNBIL), forças exógenas emprestam sua colaboração para adensar o volume de
normas inúteis. A Copa das Confederações e a Copa do Mundo, sob o escudo da
Federação Internacional de Futebol (Fifa), anunciam um conjunto de normas para
mudar o comportamento do torcedor brasileiro. Serão terminantemente proibidos
nos estádios xingamentos a jogadores, juízes e suas progenitoras, censura que
acabará abarcando os elogios, porquanto no burburinho de torcidas inflamadas
nenhum ouvido será capaz de distinguir onomatopeias positivas de palavrões.
Risível, não? O fato é que a Fifa quer mudar por decreto a maneira brasileira
de ser. Obrigar torcedor fanático a entrar em ordem unida e adotar
comportamento considerado exemplar é tentar tapar o sol com a peneira. Tem
mais: que ninguém tente levantar-se para comemorar um gol de seu time ou
reclamar impedimento de jogador do time adversário. Cerveja pode, mas fumar,
nem pensar.
Dito isso, vem a pergunta: como os
pregadores dos bons costumes em estádios de futebol controlarão o ímpeto
expressivo da massa? Brigadas da Fifa vigiarão seus movimentos?
Esses são os nossos trópicos. A fúria
legiferante que entope as vias institucionais e chega ao cotidiano, afetando de
um modo ou de outro a vida das pessoas, tem muitas significações. Para começar,
somos um país que ainda não cortou as amarras da secular árvore do carimbo,
"preciosidade" trazida pelos colonizadores portugueses. O carimbo foi
criado por dom Diniz nos idos de 1305 para conferir autenticidade a documentos.
Concedido a "homens bons", nomeados pelo rei, que juravam fidelidade
aos santos Evangelhos, incrustou-se na vida brasileira a ponto de atravessar,
incólume, mais de cinco séculos. Deixa sua tinta forte na própria era digital.
A autenticação e os selinhos de cartórios trazem obsoletos costumes ao nosso
cotidiano, pavimentando os caminhos da burocracia. Explica-se o cartorialismo
ainda pela capacidade de fortalecer a estrutura de autoridade; esta, por sua
vez, se expande na esteira de leis que procuram impor a ordem do mundo ideal.
Trata-se da visão platônica de plasmar a realidade por força da lei. A célebre
pergunta "você sabe com quem está falando?" expressa a ideia de que o
poder deriva do cargo de quem o detém. O brasileiro, mais que outros povos,
exibe essa bandeira.
A floresta legislativa agiganta-se
nessa vertente. De 2000 a 2010, o País criou 75.517 leis, somando legislações
ordinárias e complementares estaduais e federais, além de decretos federais, o
que dá 6.865 leis por ano. Em 2012, na Alemanha, o Parlamento foi muito
criticado por ter aprovado 20 leis. A imprensa considerou excessivo o número.
Lembre-se que os anglo-saxões organizam a vida sob o direito consuetudinário,
ancorado em costumes. Poucas leis bastam.
Outra questão é a desobediência ao
império legal. Infringir a lei torna-se rotina no País. Não por acaso, entramos
no chiste como quarta modalidade de sociedade no mundo. A primeira é a inglesa,
em que tudo é permitido, com exceção do que é proibido; a segunda é a alemã, em
que tudo é proibido, salvo o que for permitido; a terceira é a totalitária, em
que tudo é proibido, mesmo o que for permitido; e a quarta é a brasileira, em
que tudo é permitido, mesmo o que for proibido. Nossas leis caem no
esquecimento. Proibição de películas escuras nos automóveis? Uso de cinto de
segurança no banco traseiro? Dirigir com apenas uma mão no volante? Levar
estojo de primeiros socorros nos veículos? Afinal, essas coisas foram ou não
revogadas? Por via das dúvidas, não se cumpre a legislação. E ainda há um monte
de leis inconstitucionais. Nos últimos dez anos, o STF julgou quase 3 mil ações
diretas de inconstitucionalidade, mais de 20% foram julgados inconstitucionais.
Imensa quantidade do arsenal
legislativo não atinge a vida dos cidadãos. São floreios para adornar uma
galeria de homenageados. Datas comemorativas e louvações tomam a agenda de
nossos representantes. Por último, pérolas formam o PNBIL: em Santa Maria (RS)
um vereador propôs a lei do silêncio dos animais para evitar latidos de
cachorros após as 22 horas; em Catanduva (SP) um projeto ditava que os doentes
deveriam morrer em cidades vizinhas por causa da superlotação das sepulturas;
em Sobral (CE) sugeriu-se construir Torres Gêmeas para abrigar a prefeitura e
as secretarias; em Manaus um vereador queria instalar um neutralizador de
odores nos caminhões de lixo; e em Porto Alegre cavalos e burros teriam de usar
fraldas, "com exceção dos que participarem de eventos". Ufa!
Gaudêncio
Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor político e de
comunicação. Twitter: @gaudtorquato